Vitor Sousa
Jornalista
OPINIÃO
O que é feito delas?
A minha geração teve a grata possibilidade de conduzir algumas das motos mais extraordinárias de sempre. Afirmo-o com convicção: isto (o motociclismo de hoje) não vai melhorar muito mais.
andardemoto.pt @ 24-8-2024 17:44:00 - Vitor Sousa
A invasão da eletrónica e as restrições políticas ao uso da moto vão impor limitações às suas bases que, inevitavelmente, conduzirão a uma geração de “veículos de duas rodas” desprovidos de carácter e personalidade. Sim, eu sei, sou um pessimista…
É certo que, os tais da minha geração que nasceram nos anos 1960, cresceram nos 70 e atingiram o pico da sua realização pessoal e profissional no final dos anos 1990 começaram a andar de moto em “chaços” que tinham muita ‘chama’ e pouca estrutura, mas a evolução verificada nas duas últimas décadas do século passado, em matéria de projeção, desenvolvimento e fabrico – processo liderado pela fortíssima indústria japonesa – levou ao aparecimento de motos que ainda hoje deliciam quem se lembra delas, ou a quem as vê passar e até inveja perante muita coisa que se constrói hoje.
E não é só de nostalgia que falamos.
Um dos segmentos que maiores paixões suscitava era o da “moto de viagem”. As verdadeiras motos “Touring” como as Honda Pan-European, Yamaha FJ(R) ou BWW RT, eram motos estupendas, todas elas. Estes três casos – talvez as mais vendidas da categoria - na sua diversidade, com motores de quatro cilindros em V longitudinal, quatro cilindros em linha e dois cilindros ‘Boxer’, sempre com cilindradas acima dos 1000cc, de refrigeração líquida ou por ar/óleo e transmissão por cardan (a FJ 1200 ainda era por corrente e refrigeração por ar; a 1300 de 2001 já apresentava cardan e motor “a água” ), ofereciam um equilíbrio perfeito entre o desempenho que os motores, suspensões e travões ofereciam, o conforto para um ou dois ocupantes e também, devidamente equipadas, a capacidade de bagagem correspondente. O seu comportamento dinâmico, apesar do peso, distância entre eixos e concepção focada no conforto era impressionante, com um comportamento em curva que as distinguia claramente dos “transatlânticos” Gold Wing, Harley-Davidson ou quejandos.
E depois aconteceu o “Long Way Round” (2004). A mediática aventura de Charley Boorman, Ewan McGregor à volta do mundo, meticulosamente captada em vídeo por uma equipa de produção liderada por Claudio Von Planta que os seguiu, e que veio projectar um modelo específico de moto para um patamar poucas vezes (ou talvez mesmo nunca…) alcançado por alguma moto desde que Hildbrand e Wolfmuller inciaram a produção em série de motociclos em 1894: a BMW R/GS.
Já havia quem viajasse em trails de grande cilindrada, claro, e mesmo quem utilizasse a GS (Gelande/Strasse… campo e estrada em alemão) …, mas eram sobretudo aqueles maluquinhos que se perdiam dias, semanas, às vezes meses, em sítios recônditos do planeta, especialmente em África, em viagens a solo, sem câmaras nem produtores, e eminentemente espirituais.
A partir desse momento, com uma série na televisão a estrear na Sky e repetida quase de imediato na BBC, edição em DVD e livros publicados, estava lançada a semente para o fenómeno em que a GS se transformou, de então até hoje. A moto, dotada daquele motor “com os cilindros para fora”, onde as canelas se esfolavam frequentemente, que só os polícias ou os “velhos” conduziam, tornou-se na moto referência do século XXI. Uma popularidade que a BMW – inteligentemente – soube semear, promover e cavalgar. Ao construir uma moto que, nalgumas das suas versões roçou a perfeição, a marca de Munique oferecia um produto que qualquer condutor – com muita, pouca ou nenhuma experiência, baixo ou alto, homem ou mulher – pudesse conduzir com uma sedutora sensação de segurança e facilidade (fruto em grande parte do baixo centro de gravidade que o motor ‘Boxer’ oferece).
O efeito nefasto do seu sucesso foi o de secar tudo à volta, qual eucalipto motociclístico, impondo uma referência que a concorrência se viu forçada a seguir e eliminando a categoria das grandes motos de Turismo do final do século passado e início deste. Só a BMW mantém a sua RT em produção e porque partilha boa parte dos componentes com… a GS.
Os viajantes de hoje (que os há mais do que alguma vez houve) sejam os que visitam continentes, ou os que nunca passam da N2, ambos sonhando com a façanha de Boorman e McGregor, já não o fazem nas “streamliners” elegantes e aerodinâmicas de outrora, preferem a rudeza das formas, o desequilíbrio aparente das linhas e o perfil de aventureira.
Eu tenho saudades das outras.
andardemoto.pt @ 24-8-2024 17:44:00 - Vitor Sousa
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