Vitor Sousa

Vitor Sousa

Jornalista

OPINIÃO

Brincar aos clássicos

As últimas duas décadas viram crescer o interesse pelas motos de inspiração clássica de uma forma, talvez, inesperada. Numa sociedade virada ao futuro, à tecnologia, ao consumo imediato, no fundo à superficialidade, não era previsível que disparasse o interesse por ‘velharias’. No entanto, ou por isso mesmo, a busca de referências estéticas e, porque não, culturais tornou-se uma necessidade premente.

andardemoto.pt @ 27-12-2024 12:30:00 - Vitor Sousa

Enquanto veículo prático, nas suas vertentes de transporte, de viagem ou desportivo, a moto conheceu uma evolução imensa nos últimos 20 anos. A maquinaria e os métodos de fabrico evoluíram, o recurso a melhores materiais intensificou-se e a sua escolha diversificou-se, as ideias evoluíram, a tecnologia deu – de facto – um enorme salto colocando ao serviço dos utilizadores ajudas que em muito melhoram o conforto, a facilidade de condução, o consumo e, o mais importante, a segurança (ver a esse propósito o editorial da nossa revista digital #73).

O resultado desta acelerada modernização foi o aumento da qualidade das motos em todas as suas vertentes: motor, quadro, suspensões, travões, pneus… Mas, a evolução da moto, como veículo, deixou de ser linear no conceito a partir dos anos 70 do século passado, iniciando-se uma ‘especialização’ que levou ao aparecimento de segmentos que, mais do que apresentando a tecnologia como primeiro fator diferenciador, apelava à vertente emocional para o seu desenvolvimento e imposição no mercado. Exemplos: motos desportivas, inspiradas nas motos de Grande Prémio, com carenagens, suspensões duras, desconfortáveis, com potência a mais para a capacidade de muitos dos que se propunham conduzi-las; motos trail, decalcadas das motos do, então crescente em popularidade, Rali Paris-Dakar, com grandes e desnecessários depósitos de combustível, suspensões de grande curso, motores monocilíndricos (mas não só) de grande cilindrada (e mais pequena a imitar as grandes), etc… as marcas perceberam, então, que havia esse elemento de paixão, mimético, que apelava ao sonho e à paixão, profundamente nostálgico, com grande potencial de exploração comercial. Todos queriam ser Freddie Spencer ou Cyril Neveu.


Um outro caminho ensaiado foi o de recuperar uma estética que ainda dizia muito aos que, em 1990 (+/-), estavam a entrar na casa dos 40 anos de idade e recordavam com saudade os tempos em que as motos de grande cilindrada os impressionavam, duas décadas antes, ora como condutores ou simplesmente como fãs do tema; eram as motos que viam estacionadas à porta dos cafés e nas montras dos concessionários: Honda 750 ‘Four’, ou 900 Bol d’Or, ou a Kawasaki Z900, entre outras. Os mesmos que, depois de anos sem moto, estavam a regressar às ‘duas rodas’, consolidada a vida profissional e familiar. Foi seguindo esta lógica que as marcas começaram a produzir algumas motos de cariz mais nostálgico. Nos anos 1990, a Kawasaki com a Zephyr 750, a Honda com a CB ‘Seven-fifty’, a Suzuki com a GS 1200 (Inazuma) e a Yamaha com a XJR 1200 responderam a esse sentimento criando essa primeira vaga de motos ‘retro’.


No ano 2000, a Triumph lançou a primeira moto verdadeiramente revivalista, ‘ressuscitando’ a Bonneville. Por um lado, recuperava um nome mítico da história global do motociclismo (considerada a moto mais ‘cool’ do século XX), por outro lançava a semente para o despontar de forma séria e concreta de um novo segmento de motos, entretanto apelidado de ‘modern classics’ (designação da própria Triumph), retro (de novo) ou, mais portuguesmente, neo-clássicas. A inspiração já não era a dos anos ’70, mas a dos ’60 (a primeira Bonneville saíu em 1959), a tónica já não era o desempenho (mesmo que limitado nas ‘naked’ que referimos antes), mas as sensações e… a estética.


‘Looks over function’ passou a ser a receita. O sucesso da Bonneville não se fez esperar e a própria Triumph não hesitou em lançar derivações do mesmo tema – Thruxton, Scrambler… - aproveitando a onda nostálgica que atingiu a sociedade com impacto na primeira década do novo século, do mobiliário aos automóveis, da moda às motos. A reabertura do mítico Ace Café de Londres, em 2001, e a proliferação de eventos dentro do espírito, como o fenómeno ‘The Distinguished Gentleman’s Raid’ ou o ‘Wheel and Waves’ (que deu grande eco à ‘febre’ das personalizações com base neste tipo de moto) levou a que, rapidamente, outras marcas cavalgassem a oportunidade, sendo os exemplos mais populares e, simultaneamente de maior sucesso comercial, a BMW R Nine T (2014) e o ‘spin off’ da Ducati ao criar, não um modelo, mas uma nova marca, a Scrambler.

É de facto um fenómeno que, ao contrário do que aconteceu com outras tendências e/ou modas na indústria motociclística, não passou, não perdeu ‘gás’… pelo contrário. Dura há vinte anos e parece estar para durar. Outras marcas seguiram a tendência, incluindo as japonesas. Entre estas, o exemplo mais curioso será o da Kawasaki W 650 que, inclusivamente, saíu um ano antes da Bonneville, mas que, nesse momento quase passou despercebida. E curioso porque a W650 ‘recuperava’ a W de 1967 que mais não era do que um modelo ‘inspirado’… na BSA A7!

Renascem marcas (a Norton que vai e vem, a BSA…) e potenciam-se outras como a Royal Enfield que está a levar muito a sério esta tendência.


Hoje, a Triumph, percussora do estilo, tem na sua gama 11 modelos ‘modern classics’, com cilindradas, estilos e tipos de utilização para todos os gostos, que vão das ‘café-racer’ (designação que, erradamente, muitos generalizam para etiquetar as motos neo-clássicas) às Scrambler, passando pelas Bobber.

O que faz, afinal, o sucesso destas motos? Por um lado, há de facto um grupo de ‘nostálgicos’ que aderem a estas motos porque um familiar ou um amigo próximo teve uma. Outros porque são pessoas fortemente influenciadas pelas modas expostas permanentemente na internet, carregada de ‘influencers’ e outros patetas. Algures entre uma coisa e outra estará a razão mais profunda. E essa, parece-nos, prende-se com o desejo de reviver, regressar ou reativar uma sociedade (ou, no mínimo, uma comunidade) mais aberta, mais descomplexada, mais pura, menos controlada por ‘wokismos’ patéticos, no fundo MAIS LIVRE. Um escape à padronização dos comportamentos e das ideias que nos impõem hoje. E a liberdade é o sentimento que tem acompanhado, sempre, o fenómeno motociclístico. Há mais de 100 anos que é assim.

andardemoto.pt @ 27-12-2024 12:30:00 - Vitor Sousa


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