Comparativo Transalp vs Africa Twin - David vs Golias

Desenhando uma tangente ao lado do óbvio, certamente se aperceberam que estas motos são da mesma marca. Mais gritante ainda, pertencem ao mesmo segmento. Então porquê este jogo das diferenças? Simplesmente porque no centro de uma decisão muitas vezes precisamos de descobrir os argumentos certos, sobretudo aqueles que fazem mais sentido para determinado utilizador.

andardemoto.pt @ 29-10-2024 13:55:57 - Texto: Pedro Alpiarça | Fotos: Luis Duarte


Mesmo não sendo profundos conhecedores da Bíblia, certamente que já ouviram falar da história de David e Golias, relatando a improvável vitória de um mero soldado que derrotou um gigante com uma simples pedra. O uso certeiro de uma funda para acertar em cheio no meio da testa de tão difícil adversário, deu corpo à parábola das conquistas improváveis, em que o elemento subestimado acaba por vencer graças à sua atitude destemida e assaz engenho.

Não querendo à partida revelar que a história se repete na batalha entre estes dois modelos, a analogia acaba por fazer sentido quando olhamos para o desafio. A Honda idealizou a Transalp e a Africa Twin com objectivos e públicos alvo diferentes, mas no entanto, estas maquinas são ambas capazes de fazer o mesmo. Vamos então folhear a brochura e perceber o que oferecem…


 A CRF 1100L Africa Twin sofreu algumas alterações para este ano, mas manteve o purismo aventureiro da jante 21”, diferenciando-se da proposta mais estradista (com jante 19”, suspensões electrónicas e maior capacidade do depósito) da sua irmã gêmea conhecida como Adventure Sports. O seu motor foi trabalhado a nível da abertura de válvulas, do módulo electrónico da injecção e do sistema de escape, compatibilizando-a com a nova norma europeia de emissões Euro 5+. Muito embora não exista ganho de potência (mantêm-se os 100 cv), os valores de binário aumentaram 7% (subiram para os 112 Nm) e surgem mais cedo no espectro de rotações (agora às 5500 rpm).

Um novo ecrã ajustável em 5 posições facilita-nos a vida nas tiradas mais longas e as jantes montam agora pneus sem câmara de ar (tubeless). A caixa de velocidades de dupla embraiagem (o conhecido sistema DCT) está disponível em ambas as versões. No campo da electrónica nada mudou, continuamos a ter uma IMU dedicada a fazer trabalhar as ajudas, e um ecrã táctil com capacidade de navegação por mapa (com app específica da marca, compatível com Android Auto e Apple Car Play). 

A Africa Twin mantém a sua personalidade aprazível, que sempre se revelou fácil de explorar, sendo perdulária no limite e uma das mais acessíveis maxi-trail do segmento. 



A XL 750 Transalp chegou há pouco mais de um ano. O seu legado merecia uma sólida continuidade e o mercado acolheu-a de forma muito positiva. E não é para menos, visto que o segmento das trail de média cilindrada está mais forte do que nunca, um verdadeiro circo de feras. Mantendo uma geometria simpática e acessível, a sua jante dianteira de 21” (neste caso montando pneus com câmara de ar) sugere uma polivalência direccionada para o fora de estrada. A sua plataforma é partilhada com a Hornet, cujo ex-libris é o bicilíndrico paralelo de 755 cc que bebita 91,8 cv e 75 Nm. Estes valores motrizes associados aos seu baixo peso (208 kg a cheio), fazem com que tenha exactamente a mesma relação peso/potência que a Africa Twin (que pesa 231 kg na versão sem DCT), e nas próximas linhas iremos explicar-vos o que isso significa…

Aparte da sua simplicidade geral, temos os requisitos mínimos para podermos moldar-lhe a personalidade, com mapas de condução que modelam as ajudas electrónicas convencionais (sem IMU) e um ecrã TFT colorido com capacidade de conectividade a um smartphone (com possibilidade de navegação simplificada, vulgo “turn-by-turn”).


A Transalp destaca-se graças ao fantástico motor que monta. As suas linhas clássicas e algo discretas escondem uma moto que gosta de nos desafiar, mas sempre com o azimute apontado a uma surpreendente facilidade de condução. 


É chegado o momento de perceber onde estão os quase 5k euros que as separam (Africa Twin desde 15325 € e Transalp desde 10700 €), e acreditem que não foi um trabalho fácil porque este David consegue facilmente colocar um Golias de sobreaviso..


Num contexto de quotidiano citadino, ambas são capazes de nos facilitar a vida nos tortuosos momentos de trânsito cerrado. A posição de condução é mais “espaçosa” na AT, estamos com os braços mais abertos e com as pernas mais esticadas, sendo que existe também uma sensação de maior volumetria do conjunto. Os motores são responsivos e complacentes nas baixas rotações, as embraiagens são leves e a caixa de velocidades funciona directa, suavemente e sem soluços. Nos momentos de maior aperto, a Transalp ganha vantagem pela sua maior agilidade e sensação de centro de gravidade mais baixo. Não só vamos mais perto do chão (são 40 mm de diferença na distância ao solo), como temos uma menor distância entre eixos. Curiosamente colocamos com a mesma facilidade (com o assento da Africa Twin na posição mais baixa) os pés no chão, visto que os 850 mm de altura são iguais nas duas unidades. A Honda não trabalha ao acaso, nem nós acreditamos em coincidências…



A afinação das suspensões da Transalp privilegia o conforto (sendo que na África Twin temos regulação total em ambos os eixos, uma solução técnica de qualidade superior), e conseguimos rolar tranquilamente sem medo de maiores sobressaltos. A capacidade de carga dá-nos uma margem de confiança extra, no caso de querermos montar uma Top-Case ou até mesmo se quisermos fazer faenas no meio dos automóveis com malas laterais.


 Mas este tipo de solução rima com estrada aberta, explorar o mundo, ou apenas levar a patroa a almoçar fora. Aqui nota-se uma clara vantagem da máquina maior, em que a estabilidade derivada de uma maior inércia revela-se crucial para um maior conforto de rolamento. Outros parâmetros favorecem a experiência, tais como o cruise control ou a possibilidade de podermos ajustar o ecrã deflector para desviar a carga aerodinâmica do capacete. Até mesmo a presença das protecções de punhos mostra-se contextual neste cenário. O maior binário do motor 1100 ajuda nas recuperações e dá-nos uma maior sensação de segurança, sabendo que podemos contar com o punho direito sem termos de passar de caixa. O formato do assento e a sua densidade não merece quaisquer comentários depreciativos em ambos os modelos, assim como a ausência de vibrações indesejáveis nos regimes em que rodamos a velocidades “legais”.


Quando começamos a colocar questões mais sérias à ciclística, o espectro muda radicalmente. Nas secções mais encadeadas, a Transalp deixa de ser a miúda sonsa que toca flauta na banda da escola e salta para cima da mesa com vontade de pagar shots de tequila a toda a gente!

Que motor. A sua vontade incontrolável de subir de rotação e a explosividade que não consegue conter, transfigura a experiência de condução e ficamos na dúvida se a ciclística irá acompanhar toda esta exuberância. Era imperativo um quick-shifter de série, e uma suspensão traseira com mais afinação do que meramente a pré-carga, porque rapidamente percebemos que estamos a dar-lhe bolas a mais para tão delicado malabarismo. E a culpa é do bloco motriz, que não nos deixa ficar sossegados. No outro lado da trincheira, a Africa Twin assegura-nos que tudo irá correr bem, mesmo se lhe pedirmos para falar latim.

Estável, sempre bem plantada, o seu motor menos explosivo serve-se do binário para carregar velocidade em ângulo, muito embora seja ligeiramente mais lenta nas mudanças de direcção. A maior eficácia do seu envelope dinâmico é sustentada pelo equilíbrio geral do conjunto, ao invés do claro - e divertido - improviso a que estamos sujeitos na Transalp (até mesmo no campo da travagem temos uma maior mordacidade e uma acutilância mais desportiva). A analogia que pinta o cenário é a de levarmos ao parque um Pastor Alemão ou um Jack Russel Terrier (o cão do filme “A Máscara”, lembram-se?)...



Quando acabou o asfalto e a poeira se levantou, outra mudança de paradigma foi observada. O que poderíamos esperar ser uma vantagem da Transalp, a sua agilidade, foi abafada pela neutralidade de reacções da Africa Twin. Passamos a explicar. A África Twin passeia toda a sua elegância nestas condições de baixo atrito. As suspensões filtram as irregularidades e potenciam a tracção da roda traseira, e a sua boa distribuição de massas ajudam a prever o movimento seguinte para recuperar o controlo da máquina. Tudo acontece de modo fluído. No caso da Transalp as reacções são sempre mais bruscas, muito por culpa da acção da suspensão posterior e da explosividade do motor. Nada de assustador, entenda-se, até porque depois de nos habituarmos a este divertido rodeo, desligamos toda a electrónica para potenciar ao máximo a diversão. Ainda sobre a electrónica, depois de nos adaptarmos ao estapafúrdio número de botões existentes nos seus comutadores, a Africa Twin revela uma maior sofisticação no funcionamento das suas ajudas. Também gostaríamos que a Transalp viesse equipada de origem com uma protecção de cárter, sobretudo para protecção dos colectores.


Estas serão as principais características que definem as diferenças entre estas duas propostas da marca da asa dourada. A Africa Twin exala um enorme equilíbrio geral, com muito poucas falhas a apontar, ao passo que a Transalp consegue resolver quase todas a suas carências no catálogo de acessórios. Dizemos este quase…porque a distância ciclística e tecnológica é evidente. Honestamente, não é menos moto por isso, e a sua atitude compensa alguma falta de refinamento em relação à grande rainha do deserto. Um David que se agiganta perante um Golias que acaba por lhe ganhar respeito. Lembram-se de mencionarmos que têm a mesma relação peso/potência? 




andardemoto.pt @ 29-10-2024 13:55:57 - Texto: Pedro Alpiarça | Fotos: Luis Duarte


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