Pedro Alpiarça

Pedro Alpiarça

Ensaiador

OPINIÃO

A carcaça de presunto

Sempre fui capaz de fazer grandes tiradas. Começar a rolar nos primeiros raios de luz do dia e terminar quando já não é possível prescindir dos faróis acesos é um acto de profunda satisfação. Gosto de ter aquela sensação de sair trôpego da moto, de fazer contas aos quilómetros entre abastecimentos. Gosto de ficar naquela região mental onde navego na paisagem, onde o acto mecânico da condução já só responde ao instinto, estabelecer um ritmo, e deixar-me envolver pela cadência da estrada. Gostava de ter mais dias assim.

andardemoto.pt @ 1-11-2022 09:09:00 - Pedro Alpiarça

Por isso admiro os verdadeiros viajantes, aqueles que consomem distâncias em jornadas épicas, sem pensarem no seu fim. Acredito que tenho esse espírito de missão em mim e sempre que posso testo essa resiliência motociclística, mas sei que me falta algo que apenas o tempo e a experiência vão apurando. A capacidade de saber parar. De colocar em causa o planeamento do trajecto e aproveitar momentos e situações que o destino oferece. Os viajantes sabem fazê-lo, agarram os pormenores que enriquecem a experiência, com a certeza de serem únicos.


Há umas semanas atrás, estava num desses dias êxtase em duas rodas, tinha 400 quilómetros feitos e mais outros tantos por fazer. No meio do Alentejo, no seu maior lago, encontrei a aldeia perfeita para levar a moto à beira de água e dar um mergulho retemperador. Com a missão cumprida e o estômago a pedir combustível, procurei um sítio onde pudesse comer algo. Nestas alturas fico satisfeito com pouco, o ónus do tempo perdido sem estar a rolar faz-me passar ao lado de outras delícias gastronómicas (um crime, eu sei).


O pequeno café tinha grupos de pessoas a almoçar, mas não parecia um restaurante, era demasiado ruidoso e intimista, a disposição da sala era aleatória e parecia que todos naquele espaço se conheciam. Rapidamente fui despachado por alguém que tinha mais do que fazer do que perder tempo com estrangeiros. Almoços só por encomenda, a casa estava cheia e eu era, efectivamente, naquele exacto momento, no meu país, no meu Alentejo, um estrangeiro. Nem com a desculpa de não querer comida a sério, uma bifana e uma cerveja fresca chegavam, me safei.


Numa mesa corrida com muitos, ouço uma voz forte, com a autoridade de quem é da terra:


  • Então e o moço vai-se embora assim? Sem comer nada? Venha de lá aí uma carcaça com presunto e ele senta-se aqui c’a gente! 


Na cozinha encolheram-se ombros, resmungaram-se impropérios. Na tal mesa corrida vociferavam-se palavrões ao facto da pequena aldeia deixar partir alguém com fome. De estrangeiro passei a forasteiro e senti a empatia daqueles que sabem o quanto custa cruzar as grandes planícies com o Sol a pino. 


Das duas hipóteses que tinha, escolhi a segunda. Gostaria de ter ficado, de ter tempo para a conversa, de honrar o gesto da oferta com disposição para uma partilha com gente genuína. Agradeci e voltei à moto com a plena certeza de que, se fosse viajante, este seria o princípio de uma bela tarde, e que aquela carcaça com presunto teria um sabor muito especial.

andardemoto.pt @ 1-11-2022 09:09:00 - Pedro Alpiarça


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