Pedro Alpiarça

Pedro Alpiarça

Ensaiador

OPINIÃO

Lisboa

Há vinte anos atravessava o Tejo no ferry cacilheiro, desembarcava no Cais do Sodré e atravessava Lisboa para ir ter com a minha namorada.

andardemoto.pt @ 10-3-2024 17:30:00 - Pedro Alpiarça

Lembro-me perfeitamente da sensação de liberdade infinita que me enchia o peito. Os primeiros metros percorridos na íngreme rua do Alecrim eram sempre afoitos, de 2ª metida a pequena Vespa vermelha era invencível. Puto estúpido, viciado em adrenalina e sempre - mas sempre - convencido de que o acelerador era a resposta para todos os desafios, os carris dos elétricos e as tampas de esgoto ensinaram-me a ter respeito pela rigidez do asfalto. Por mais insolente que a minha condução fosse, a imutabilidade daquela premissa era bem real. As quedas eram o autoritário educador, o limite a descoberto, e a lição a ser estudada. Tenho saudades desse ser humano de borracha.


Lisboa era uma cidade bastante diferente. As ruas da Baixa eram povoadas por gente que seguia ou regressava do trabalho, o comércio definhava lentamente, e os edifícios eram cobertos por uma decadente falta de esperança. Pontualmente, existiam eventos que revitalizavam certas zonas da cidade, mas tínhamos a sensação de que o tempo não andava. Os lisboetas viviam num torpor causado pelo trânsito sem solução, pelos jardins abandonados, pelos espaços monumentais sem vontade de mostrar a sua História. Hoje em dia, Lisboa tem sotaque.


Percorro as mesmas ruas noutra Vespa, mais digital, mais hipster, mais potente, mais segura de si, com perfeita noção da sua origem. Continuo com fé de que o acelerador irá acabar com o suspense de uma situação por resolver, mas os perigos são outros, e surgem sob a forma de trotinetes, tuk-tuks, e Ubers conduzidos por imigrantes sem cultura taxista. Tenho saudades dos taxistas. Eram previsíveis…

Por todo o lado há ruas cortadas por causa das obras, e hordas de turistas que, enquanto procuram o melhor enquadramento para a foto, esquecem-se que esta cidade ainda não é deles.


Nos cafés da moda, nas áreas verdes arranjadas, nas lojas comuns a qualquer capital europeia, há uma urgência em aproveitar a onda, mesmo que o lisboeta viva à tona de água. Nesta cidade fundada por fenícios, a reinvenção é constante, e esta maquilhagem globalista não consegue gentrificar um passado imutável e honroso.

Embrenhado numa Lisboa que já foi mais minha, tenho medo de que se precisar de ajuda, ninguém à minha volta fale português. É que há 20 anos, quando o pistão da minha PK 50 agarrou, numa das grandes avenidas, quem me socorreu foi um taxista.

andardemoto.pt @ 10-3-2024 17:30:00 - Pedro Alpiarça


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